—
É hoje o último dia, Raul!
—
Preciso fazer essa inscrição de qualquer maneira, Luana. Sou um bom mecânico e
tenho certeza de que essa é a minha grande chance de arrumar um emprego!
—
E sua mãe? Precisa levá-la ao médico hoje. Ela não está nada bem!
—
Vou fazer isso, também. Pegarei uma guia de consulta no hospital. Ainda bem que
ela tem um plano público de saúde, senão, não sei como faríamos!
—
Será que dará tempo de você fazer a inscrição para esse concurso público e levar
sua mãe ao médico?
—
Tem que dar Luana! Precisamos muito desse emprego! Já estou começando a ficar
desesperado! Estou com os nervos à flor da pele! Há muito tempo não consigo mais
dormir direito e acordo sobressaltado todas as noites!
—
Eu também, Raul! Tenho sentido uma tristeza muito grande! Olho para o berço do nosso
bebê e não consigo conter as lágrimas!
—
Se Deus quiser, desta vez vou conseguir!
—
Mas procure se acalmar, Raul, para que possa fazer tudo direitinho. Você achou
a foto para a inscrição?
—
Achei, apesar de ela já ter mais de oito anos. Está um pouco diferente. Envelheci
muito nestes últimos meses!
Luana
abraça o marido, tentando dar-lhe apoio. Raul encontra-se desempregado há quase
um ano e o pouco dinheiro que recebeu com a demissão já está chegando ao fim.
Possuem um filho de apenas dois anos de idade e a mãe de Raul, dona Jacy, que
mora com eles, encontra-se no momento muito doente, com um princípio de
pneumonia. Dona Jacy é pensionista do falecido marido, recebendo pequeno salário
que mal lhe dá para comprar os remédios diários para normalizar sua pressão.
É
segunda-feira e, no dia anterior, Luana ficara sabendo de um concurso público
para vários tipos de serviços, dentre eles, o de mecânico de manutenção em
máquinas de terraplanagem, especialidade do marido.
—
Bem, Luana, vou primeiro até a prefeitura e depois irei até o hospital. Bem à tarde,
levarei mamãe ao médico. Não me espere para almoçar porque não vou ter tempo
para isso.
—
Boa sorte, Raul! E que Deus o acompanhe!
Raul
sai apressado, pois além de ter que fazer sua inscrição para o concurso, terá
também que apanhar uma guia de consulta e levar a mãe ao médico. A tudo isso,
soma-se a dificuldade da cidade grande, capital do Estado, onde tudo é muito longe.
Dessa forma, Raul apanha um ônibus circular e dirige-se, primeiramente, até a
Prefeitura. Na verdade, o tempo que terá que gastar para tudo isso é
suficiente, já que tem o dia todo, dependendo, obviamente, das diversas pessoas com quem terá que se
relacionar.
Dessa
forma, a partir de agora, passaremos a ver toda essa sua caminhada de duas
formas, as quais o leitor poderá identificar pelos dois diferentes tipos de discurso:
08h00min h
—
Bom dia, minha senhora! Preciso de uma informação...! – Diz Raul para a mulher
que se encontra por detrás de uma escrivaninha na repartição da Prefeitura e que,
lixando as unhas, conversa com outra funcionária.
—
Um momento, Senhor! – responde. — Sente-se ali numa daquelas cadeiras e aguarde
um pouco. Começaremos a atender às nove horas.
—
Mas é apenas uma informação...!
—
Faça o favor de aguardar! – diz, rispidamente, a mulher, levantando-se e dirigindo-se
para uma sala contígua, acompanhada pela outra funcionária, deixando Raul sozinho.
08h00min h
—
Bom dia, minha senhora! Preciso de uma informação...! – diz Raul para a mulher
que se encontra por detrás de uma escrivaninha na repartição da Prefeitura e que,
lixando as unhas, conversa com outras funcionárias.
—
Bom dia, meu senhor. Em que posso lhe ser útil? – responde a mulher, sorrindo e
colocando a lixa dentro da gaveta.
—
É aqui que estão acolhendo inscrições para o concurso de mecânico?
—
É aqui, mesmo!
—
Posso fazê-la agora? Ainda tenho que ir apanhar uma guia para levar minha mãe
ao médico...!
—
Bem, o horário de atendimento é a partir das nove horas, mas não há mal algum
em que eu lhe atenda agora! O senhor trouxe uma foto? Preciso também de seus
documentos!
—
Esta foto serve?! É um pouco antiga...!
—
Está bastante diferente, mas dá para ver que é o senhor! Vamos aproveitá-la! Se
o senhor passar nos testes e for empregado, daí, então, pedir-lhe-emos uma
nova. Mas, por favor, sente-se! Vou preencher a ficha de inscrição. Basta que
me responda a umas poucas perguntas!
09h00min h
—
A senhora já pode me atender agora? Já são nove horas e ainda tenho que ir a um
hospital apanhar uma guia e levar minha mãe ao médico. – pergunta Raul, que ficara
à espera da funcionária, desde as oito horas.
—
Um momento só, meu senhor, eu já volto! – responde a mulher que, nem bem
entrara na sala, sai novamente em direção à cozinha em busca de um café, deixando
o pobre homem a esperar por mais quinze minutos. Quando retorna, não consegue
esconder um ar contrafeito por ter que atender Raul e muitas outras pessoas que
ali já formam uma fila para inscreverem-se.
—
Pode aproximar-se agora! Trouxe seus documentos e uma foto? – pergunta, sem
olhar para Raul.
—
Estão aqui!
A
mulher apanha os documentos e a foto, olha de relance para o homem e afirma
categórica:
—
Esta foto não serve! Está muito velha! Nem se parece com o senhor!
—
Por favor, minha senhora! É a única que tenho no momento! Não posso fazer minha
inscrição e trazer uma nova foto amanhã?! Penso que não irá dar tempo!
—
O prazo de inscrição para o concurso encerra-se às dezesseis horas. Traga uma
foto atual! O próximo! – diz a mulher, secamente, chamando outra pessoa da fila,
enquanto Raul retira-se, bastante preocupado. A mulher fê-lo esperar uma hora e
agora terá que correr contra o tempo. Em primeiro lugar precisará tirar uma fotografia.
08h30min h
—
Sinto-me muito mais animado! – pensa Raul ao sair da Prefeitura. — Ainda bem
que existem pessoas boas neste mundo! A mulher atendeu-me antes do horário e
aceitou aquela minha foto! Estava preocupado com ela! Era muito antiga! Agora vou
até o hospital apanhar uma guia para minha mãe.
Pensando
assim, Raul apanha um ônibus em direção ao hospital. Paga a passagem, percorre
o corredor do veículo e, aproximando-se do motorista lhe pergunta:
—
Diga-me uma coisa: este ônibus passa pelo Hospital Boa Esperança?
—
Não! – responde o homem. — Vamos passar por detrás dele, na avenida expressa.
—
E o primeiro ponto de parada, logo após passarmos por ele, fica muito longe?!
—
Fica sim! O próximo fica há cerca de uns dois mil metros! O senhor deveria ter
apanhado o ônibus que vai até a Avenida Moreira! Esse, sim, passa bem defronte ao
hospital onde tem um ponto de parada!
—
Entendo...!
—
Mas não se preocupe! – diz o motorista. — Não é permitido, mas darei uma rápida
parada para que o senhor desça. Depois, é só caminhar por mais duas quadras no
sentido sul e chegará rapidamente ao hospital. E para voltar, existem diversas linhas,
inclusive, duas, para o centro da cidade!
—
Deus lhe pague meu bom homem! Não imagina o quanto está me ajudando!
09h10min h
—
Oh! Meu Deus! Aquela mulher bem que poderia ter-me atendido antes! Pelo menos,
já poderia ter ido atrás de uma nova fotografia! Perdi mais de uma hora sentado
lá! Onde será que vou encontrar um estúdio fotográfico?! Vou perguntar naquele
bar – diz Raul, para consigo mesmo, entrando no bar e perguntando ao proprietário
se conhece algum fotógrafo naquelas imediações.
—
Sinto muito, senhor! Não conheço nenhum estúdio por aqui. Penso que o senhor
deverá encontrar um no centro da cidade!
—
O centro fica tão longe daqui?! – pensa desanimado. — Por que aquela mulher não
aceitou esta minha fotografia?! Não custava nada! Depois eu lhe traria uma
outra!
Toma,
então, um ônibus e dirige-se até o centro da cidade. Caminha por uns quinze
minutos até encontrar um estúdio fotográfico onde tira a foto para a inscrição.
—
Por favor! Volte dentro de uma hora que a foto estará pronta! – diz o fotógrafo.
—
Não dá para fazê-la mais rápido? Ainda tenho que voltar à Prefeitura!
—
Vou fazer o possível! Volte em quarenta minutos! – responde o homem, sem muita
convicção nas palavras.
—
O que faço agora?! – pensa Raul, já na calçada. — Será que dará tempo de ir ao
hospital apanhar uma guia?! Já são quase dez horas e quinze minutos! Se lá fecharem
para o almoço, perderei a viagem! Acho melhor esperar a fotografia ficar pronta!
Quarenta
minutos se passam e João que ficara andando a esmo, esperando os minutos
passarem, retorna ao fotógrafo e qual não é sua surpresa quando vê a porta do
estúdio fechada com uma tablita na vitrine: “Fechado
para o almoço”.
—
Mas o que é isso?! O homem pediu-me para voltar dentro de quarenta minutos e
saiu para almoçar! Mas será que ninguém respeita mais ninguém?!
O
coitado não sabe o que fazer e entra numa pequena papelaria localizada ao lado.
—
Por favor, dê-me uma informação: a que horas o fotógrafo aqui ao lado volta do
almoço?
—
Ele costuma sair às onze horas e só retorna às treze e trinta!
—
Ele não mora aí?
—
Não! Ele mora longe do centro!
—
Mas ele me disse para voltar em quarenta minutos para apanhar uma foto...!
—
Sinto muito, nada posso fazer! – responde o balconista, voltando-lhe as costas.
Raul
sai da papelaria bastante desorientado.
—
Deveria ter ido até o hospital! Deixe-me ver...! – pensa — sim, vou até o hospital,
depois apanho minha mãe, levo-a ao médico, volto até aqui e vou para a Prefeitura.
Será que dará tempo, meu Deus?! Bem, se minha mãe estiver melhor, talvez eu
possa levá-la amanhã ao médico!
11h30min h
—
Já voltou Raul? O que aconteceu? – pergunta Luana, preocupada ao ver o marido
chegando a casa naquele horário.
—
Você pode não acreditar, mas já fiz tudo o que tinha de fazer! Só falta levar mamãe
ao médico! Pensei que não fosse dar tempo, mas graças a Deus e às pessoas que
me atenderam até agora, tudo deu certo! Estou impressionado com a atenção e o carinho
com que todos me trataram hoje! Veja só: a mulher da Prefeitura me atendeu antes
do horário, aceitando aquela fotografia antiga, explicando-me tudo direitinho a
respeito do concurso; Peguei um ônibus errado, mas o motorista me ajudou,
parando num lugar fora da linha; A moça que me atendeu no hospital o fez com
tanta gentileza que nem sabia como lhe agradecer! Além de me preencher
rapidamente a guia, fez questão de ligar para o médico marcando hora para a
consulta da mamãe! Sabe Luana, sinto-me muito mais animado e esperançoso hoje,
vendo que existem muitas pessoas boas neste mundo de meu Deus! Estou, mesmo,
muito confiante!
—
Existem muitas pessoas boas neste mundo, Raul, mas venha almoçar que logo terá
que levar sua mãe ao médico!
—
Onde está o nosso filho? Quero lhe dar um abraço!
11h45min h
—
Acabamos de fechar, meu senhor! Reabriremos o guichê das guias após as catorze
horas!
—
Por favor, moça! Eu já estou começando a ficar desesperado! Tomei um ônibus
errado e o motorista negou-se a parar próximo daqui! Precisei caminhar dois quilômetros
a pé! Tenho que pegar essa guia, voltar para a cidade, apanhar uma fotografia,
ir até a Prefeitura fazer uma ficha de inscrição para um concurso, pois estou
desempregado, levar minha mãe ao médico! Ela está com pneumonia, sabe?! E também
não tenho culpa sobre a fotografia! O fotógrafo disse-me para voltar depois de
quarenta minutos e quando voltei, ele tinha ido almoçar! A mulher da Prefeitura
não quis aceitar essa minha foto! Veja: A senhora acha que está muito diferente
de mim?! A senhora acha que...!
—
Acalme-se, meu senhor! O que é isso?! O senhor parece um alucinado!
Realmente,
Raul despejara todas aquelas palavras de uma só vez. Não se conformava com o
fato de a moça estar fechando o guichê, sem atendê-lo!
—
Por favor, moça, dê-me a guia! Por favor! Você não faz ideia de como vai
ajudar-me! Por favor, estou desesperado...! Desesperado...! Desesperado....! Desesperado...!
Desesperaaaaaado!
—
Acorde Raul! Acorde! Você está sonhando! Por que está gritando assim, dizendo
que está desesperado?!
Já
é madrugada do dia seguinte e o homem acorda sobressaltado e com o coração
batendo descompassadamente no peito.
—
Ufa! – diz aliviado. — Ainda bem que foi um sonho! Sabe que sonhei com tudo que
fiz ontem de manhã, porém com tudo dando errado? Meu Deus! Ainda bem que foi um
sonho mesmo! Depois de ser tão bem atendido e tratado pelas pessoas ontem,
agora esse sonho maluco! Graças a Deus que esse tipo de pessoa não existe na
vida real. Ou será que existe?!
—
Procure dormir, Raul – diz Luana, carinhosamente – e, por favor, sonhe com as
pessoas “certas”!
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