Assim que cheguei aqui em São Paulo, em um mês havia arranjado o meu
primeiro trabalho na cozinha pela cooperativa como cozinheiro. O trabalho era
no Atacadão de Guarulhos, na rua: Otávio Braga de Mesquita, no município de
Guarulhos. É um supermercado que faz parte de uma grande rede atacadista. De
lá, dava pra ver, pelo basculante da cozinha, o movimento intenso dos aviões na
pista do aeroporto de Cumbica, aterrissando e levantando voo. Eu ficava olhando
- sempre que podia - e lembrando que foi lá que, fazia um mês, havia chegado
daquela mesma forma como aquelas pessoas que continuamente desembarcavam no
aeroporto.
O movimento que os aviões faziam ao levantar voo, com suas asas enormes
e bem abertas, fazia-me mergulhar em profundas lembranças, ainda bem vivas em
minha memória, e me fazia recordar do voo do Gavião Real, cujo padrão
comportamental, em muito, remetia-nos às nossas representações simbólicas mais
tradicionais.
O Gavião Real (Harpia harpyja) da Amazônia é maior do que a
águia norte-americana. É um caçador perfeito e é a mais poderosa ave de rapina
do mundo. Há muito, habita as florestas da região Amazônica.
Ele se desloca com velocidade surpreendentemente fascinante por entre as
copas das árvores gigantescas da floresta, atingindo suas presas em voos
rápidos e ataques precisos, porquanto caça por espreita. Fica observando suas
presas por longos períodos, o que a torna uma ave discreta e pouco notada
apesar de seu enorme tamanho e envergadura - Chega a medir mais de 2 (dois)
metros de uma ponta a outra da asa e chega a pesar mais de 10 (dez)
quilogramas.
Está no topo da cadeia alimentar. Alimenta-se de bichos preguiça,
macacos, cutias, pacas, quatis, tatus, jabutis, veados (adora! principalmente
os filhotes!), caititu (porco do mato), e, inclusive, cachorros. Não raro,
temos nossos cães atacados por Gavião Real. Também captura araras, papagaios,
tucanos, patos, garças, bacuraus, anuns e outras aves que por acaso apareçam em
seu território.
Constrói seu ninho no copado das árvores mais altas como a
gigantesca Sumaumeira, também nas mais altas Castanheiras, localizadas
nos pontos mais altos da floresta. Utiliza pilhas de galhos secos que são
cuidadosamente selecionados para a construção de seu ninho. Lá do alto, ele
fica a observar tudo ao seu redor, nada escapa à sua apuradíssima visão. Tem um
olhar extremamente aguçadíssimo, de precisão telescópica.
O macho tem hábitos bem peculiares e prefere a solitude. Vive como um autista em seu próprio mundo, impenetrável por outrem. Até que encontra uma
fêmea, exalando feromônios em evidente estado de cio, que lhe faz sentir o doce
e encantador cheiro do amor. Ele a corteja, mostrando sua força, sua
incrível capacidade de sobrepujar a todas as dificuldades comuns para o
perfeito domínio territorial na luta pela sobrevivência.
Pode acontecer, contudo, de aparecer outro Gavião Real, igualmente
atraído pelo mesmo cheiro, e que esteja disposto a entrar na luta pela escolha
de tão ditosa dona desse provocador, envolvente e inebriante cheiro de fêmea no
cio.
A disputa, então, começa. Apenas um será o escolhido. Cabe
exclusivamente à fêmea a escolha, a decisão. É uma escolha sempre difícil, pois
são aves magníficas. A escolha formará um casal para toda a vida. Depois de
formado o casal, eles não se separam mais. O preterido terá de aceitar e
respeitar a decisão, resignando-se em se submeter a novo processo de
acasalamento, mas em outro território e em outro momento. Então, abre as asas e
voa o mais alto que pode, acima das nuvens, para longe do olhar, do campo de
visão do macho vencedor. Ele não sabe como será a sua realidade no próximo
território que ocupará. Mas, intuitivamente, sabe que a natureza o dotou com
todas as possibilidades para sobreviver e dominar. Portanto, ele parte
confiante em seu futuro.
O casal, recém-formado, comemora o novo enlace com o surgimento de dois
a três ovos, que eclodem no período de cerca de 60 dias. Não raro ficarem
apenas dois. Os pais saem à caça de alimentos e, na volta, a mãe alimenta-se
próximo dos filhotes, a fim de que os mesmos vejam-na alimentar-se e a forma
como o faz. Agindo assim, a mãe ensina pela observação. Ela não alimenta os
filhotes como as outras aves, que deixam o alimento cair dentro dos bicos de
seus filhotinhos. Não. A mãe Gavião Real instiga nos seus filhotes o desejo por
se deslocar e bicar o que for possível dos restos que propositadamente deixa
cair. Os filhotes, sentindo a dor motivada pela fome que lhes devora as
entranhas, esforçam-se por se alimentar do que lhes for possível. Começa aí, a
luta pela sobrevivência onde o mais forte, o mais rápido e o mais
esperto vence.
Assim, o casal de Gavião Real sabe que a própria corrida pela
sobrevivência selecionará apenas um dos filhotes. Aquele que se esforçar mais e
demonstrar maior força de vontade de viver, mostrando maior capacidade de
superação e facilidade de adaptação a situações adversas.
O filhote sobrevivente será alimentado pelo período de um ano. Ao fim do
qual estará pesando quase o dobro de seus pais. Estará cheio de vontades,
muito reclamão e fazendo birra o tempo todo –
comportamento típico dos adolescentes -, os pais, então, entreolham-se e tomam
uma decisão: atacam o filhote de forma violenta, destruindo todo o ninho, a fim
de que não seja mais possível considerar a ideia de se ter um lugar para
voltar.
Para sobreviver, o jovem Gavião tem de fazer uma coisa pela primeira vez
na sua vida, voar. Ele está muito pesado - mas voar é uma capacidade que as
aves instintivamente desenvolvem naturalmente. Mesmo atabalhoado, ele consegue
superar seu primeiro grande desafio pela sua própria sobrevivência. Logo,
descobrirá que, mesmo todo sem jeito, dificuldade pra voar entre as copas das
muitas árvores da floresta é o seu menor problema. Pois, ele terá de sobreviver
numa floresta, que lhe mostrará um universo ainda desconhecido para ele, cheio
de muitos mistérios e surpresas, ainda, inimagináveis.
Ele certamente passará por dificuldades muito mais difíceis. Estranhará
muito a nova realidade que se apresenta. Passará fome. Sentirá sede. Sem poder
contar com as facilidades da vida social – típico de outras aves -, encontrará
na dor da mesma solidão o bálsamo que lhe fará despertar todas as suas
potencialidades naturais, que são as ferramentas de que necessita para
sobreviver no competitivo e seletivo processo natural. Pois ele, naturalmente,
sabe que a própria natureza o dotou com todas as possibilidades e recursos para
que ele não só sobreviva, mas que também domine no território em que estiver,
porque ele foi selecionado para que subsista entre os melhores.
Eu ficava olhando para os aviões e considerava, que assim como o Gavião
Real, recém-chegado a um novo território, não sabia que caminhos percorrer, ou
em quais fontes buscar. Tinha apenas um grande desejo, conseguir obter uma boa
formação profissional. E foi em busca desse objetivo que eu me lancei nesta
nova floresta, uma floresta "de pedras", mas
uma floresta. Foi necessário que eu fosse submetido ao natural processo
seletivo de sobrevivência e de superação. Não sabia como seria, apenas sentia
na dor da necessidade e na gradativa aprendizagem solitária, o elemento
refrigerante e revigorante que, intuitivamente, fez despertar em mim as
melhores qualidades, que, por sua vez, fez-me nutrir o entusiasmo, a motivação
e a esperança necessários para a conquista dos meus ideais, como o Gavião Real.
Haja sabedoria.
ResponderExcluirGratíssimo pela leitura!
ExcluirA vida é quem nos ensina o que precisamos aprender!
Saudações fraternas!
leitura fácil, agradável, ; bela analogia e muito coerente do começo ao fim !
ExcluirAlém dos ensinamentos precisos referentes aos hábitos, habitat, porte, etc da Harpia , O GAVIAO REAL. Muito didático ..CEM MIL !!!!
Leitura fácil, agradável, bela analogia, romântico quando chama a cidade de "floresta", curti o ritmo da narrativa, coerente do começoaofim, e ainda de quebra vem com preciosas informações referentes aos hábitos,habitat,porte etc de nosso grande Gavião Real. Muito didático.
ExcluirExcelente material, deve ser compartilhado.
ResponderExcluirGratíssimo!
ResponderExcluirCertamente, precisamos divulgar mais!
Saudações fraternas!
Prezado, lendo estas considerações acerca da vida do "parente" gavião real, entendo melhor a tradição e o jeito sateré. Parabéns pela bonita história e êxitos nesta floresta de pedras. Saudades do Andirá e do Marau. Segue o link para uma coleção de cantos, registrada com o tuxaua Wilson de Oliveira na linha de frente. Passa o link para os parentes.
ResponderExcluirhttps://vimeo.com/24517568
Boa, heim!
ExcluirGratíssimo pela leitura!
Vou compartilhar o material!
Que espetáculo de texto, parabéns :)
ResponderExcluirGratíssimo!
ExcluirA vida em si, com todas as suas peculiaridades e lutas, é o grande espetáculo da natureza!
Que vivamos espetacularmente!!!!
Compreendi que o gavião real não pode voltar ao seu ninho, porque esse foi destruído. Assim, ele usa as forças instintivas para voar só, tornando-se um predador e um sobrevivente. Todavia, nós, parentes humanos, trazemos o ninho dentro de nós. Nunca voamos sozinhos, mesmo quando estamos desacompanhados, trazemos - e a própria existência de sua narrativa prova isso - dentro nós a nossa história social, a nossa origem e raiz.
ResponderExcluirObrigado por sua visita e pelo compartilhamento de sua história.
Abs
Prof. Bido
Bandtec
Nossa!
ResponderExcluirEu que agradeço a oportunidade de conhecê-los!
Vc tem razão, nunca estamos sós!
Somos sempre assistidos por aqueles que há muito nos são caros!
Muito boa percepção!
Trazemos conosco o legado de nossas mais profundas experiências!
O que somos hoje é o resultado da somatória de nossas vivências!
Foi muito profícua a reunião!
Grato pelo convite!
Luar
Uma leitura agradabilíssima Luar! Você escreve muito bem.
ResponderExcluirObrigada!
Gratíssimo!
ExcluirEstamos juntos!!
Um grande beijo!!!
Leitura prazerosa,analogia agradável, sensível e intensa sobre o crescimento, amadurecimento individual cada um com suas lutas, cheias de desafios encorajadores.
ResponderExcluirParabéns pela sensibilidade!!!
Abraços
Dra. Karla Carvalho!
ExcluirGratíssimo por sua leitura e comentário!
Sim, cada um de nós temos nossas próprias lutas e nosso próprio tempo!
Certamente que a VIDA ganha mais sentido com os esses desafios encorajados!
Tamo junto!!!
😊🙌🙏
Luar...a maneira como escreve torna a leitura instigante e leve. Tu escreve de forma poética.
ResponderExcluirGratidão
Dra Ana Cristina Ferreira! Gratíssimo por sua leitura e comentário!
ExcluirQue a poesia possa fazer a diferença nas nossas vidas!
Gratidão!!!
🙏
Super interessante!
ResponderExcluirGratíssimo!
ResponderExcluir🙏