Passada a euforia, eis que
as coisas começam a normalizar. A minha situação real, no que se refere à
subsistência, aqui nesta cidade, é a de um caçador que se lança na mata a fim
de conseguir algum alimento, sem saber o tempo de que disporá para consegui-lo.
Assim, deve estar preparado para passar por grandes períodos de restrição
alimentar. Contudo, conta com a inabalável esperança de poder resistir o
suficiente até alcançar seu objetivo.
Semelhantemente,
tenho procedido. Meu maior desejo sempre foi o de conseguir uma situação
acadêmica estável, que pudesse me facilitar a formação profissional, pois como
bolsista da Educafro na Faculdade Zumbi dos Palmares, minha situação não
poderia ser mais instável e insegura. Para tanto, tenho priorizado minha
preparação para o ENEM e para o vestibular da PUC-SP, mesmo que em detrimento
de minha própria subsistência. Mas, enfim, tenho motivos de sobra pra comemorar
as conquistas que se sucedem aos percalços.
Depois que saí
do hotel, onde trabalhava como cozinheiro, minha situação financeira ficou
restrita à indenização recebida. Não tive mais proventos. Logo, eu já não
dispunha mais de recursos pra sequer me alimentar. Surgiram muitos convites pra
trabalhar tanto como cozinheiro, quanto como garçom. Mas, eu estava
participando de um processo seletivo pra estágio na Faculdade Zumbi dos
Palmares. Houve uma semana de treinamento. Era o dia inteiro. Pra mim, a única
vantagem era que no treinamento se podia almoçar com todos os participantes.
Esse era realmente o melhor momento. Estava sempre mais preocupado com o que
tinha pra estudar principalmente com os estudos preparatórios para o Exame
Nacional de Ensino Médio - ENEM. Sabia que a minha situação de aluno da
Faculdade Zumbi do Palmares, considerando se tratar de uma instituição privada,
dependia da Educafro, mantenedora da minha bolsa de estudos, que, por sua vez,
não pretendia renovar minha condição de bolsista, já me tendo imposto pesadas
multas por não ter conseguido formar um núcleo eminentemente indígena aqui em
São Paulo, com o nome da Educafro, ou seja, essa foi a condição imposta pelo
Frei David, criador da instituição. Por isso, eu sabia que precisava aprovar na
PUC. Vivia todos os dias na esperança de receber a notícia da minha aprovação.
Terminada a
prova do vestibular, restou-me tratar de conseguir arrumar algum recurso extra.
Aceitei o convite pra trabalhar de garçom. O local foi o esporte clube Sírio
Libanês, na rua: Indianópolis, em São Judas. O clube foi escolhido por várias
empresas para a realização da festa de confraternização de final de ano.
Chegava à Zumbi, onde desenvolvia atividades preparatórias para a seletiva de
estágio, chegando às 13 horas e saindo às 17, tendo que chegar ao Sírio, às 18
horas, onde ficava trabalhando até às 4 horas do dia seguinte. Chegava a minha
casa, às 6 da manhã. Só conseguia deitar e dormir. Acordava lá pelo meio dia já
apressado para ir trabalhar (no estágio). Não almoçava porque não tinha como. O
pagamento do estágio só aconteceria lá pelo dia 8 de janeiro, e o pagamento do
trabalho no Sírio só no final do ano. Então imagina o sufoco! Quando caía
alguma caixinha, podia almoçar no Bom Prato – Santo Bom Prato! – quando não
caía caixinha, tinha de esperar comer alguma coisa no Sírio, e só à noite. E
assim os dias se passavam, sem muita novidade. Sabia que minha pontuação no
vestibular não tinha sido muito boa, mas restava-me um tênue fio de esperança.
Intuitivamente, como um caçador, esperava por coisas melhores.
Até que o dia 21
de dezembro chegou. Era o dia anunciado para a divulgação do resultado do
vestibular. Nesse dia, eu não tinha absolutamente nenhum resíduo de caixinha
alguma. Não sabia como seria ou o que deveria fazer, mas sabia que tinha de
levantar e continuar nessa inexorável realidade, nessa peleja, nessa infreme e
desenfreada peleja a que todos chamam vida. Seguia, alheio a tudo e de cabeça
erguida, tendo apenas como referência os pássaros. Pois acreditamos, por nossa
vez, que mais sábios que os homens são os pássaros, porque eles enfrentam as
tempestades noturnas; caem dos seus ninhos; sofrem perdas; têm suas histórias
dilaceradas. Pela manhã teriam todos os motivos para se entristecer e reclamar,
mas cantam! Alegremente a Deus! Agradecendo profundamente por mais um dia!
Acontece que,
para minha grata surpresa e perplexidade, o telefone tocou. Era a voz angelical
desse amigo, tal como é citado lá em Provérbios, segundo Salomão, “Quem
encontra um amigo, encontra um tesouro.”, o profº Benedito Prezia, anunciando a melhor
das notícias, melhor que qualquer coisa que eu pudesse imaginar que poderia
obter naquele momento. Era a notícia da minha aprovação no vestibular para o
tão importante e tradicional curso de Direito da PUC-SP. Não poderia me
acontecer nada melhor naquele momento. Quando eu pensei estar esquecido por
tudo e por todos, eis que ele surge como sendo o arauto da Divina Claridade,
tecendo-me a felicidade em sorrisos de esplendor. Nossa! Eu quase não podia
caber dentro de mim de tanta felicidade! Senti vontade de sair correndo e
gritar no limite do alcance de minha voz, pra que todos pudessem ouvir, a alto
e bom som, que eu consegui passar pelas porosidades das dificuldades que me
cercavam de todos os lados! Nada poderia me impedir de continuar participando
do jogo! Agora havia sido oficializado! Eu vou receber toda a formação de que
eu precise pra ser um bom operador do Direito!
No primeiro
momento não sabia, e ainda não sei direito, dimensionar o que se apresenta pra
mim. Sei apenas que pra ser um bom operador do Direito é necessário conhecer
profundamente a realidade social, o fato social. Portanto, entendo que o curso
ministrado pela PUC, pela sua tradição, vai fazer toda a diferença. Sei que
continuarão a aparecer dificuldades sem conta no meu caminho, como resultante
da práxis da realidade comum. Mas sou Sateré
Mawé, estou acostumado a suportar dores incríveis. A dor faz parte do
ritual de passagem. Sabemos que precisamos sempre continuar. Por isso sei que
vou precisar de muita força de vontade. Mas sinto-me deveras motivado! Está
sendo melhor do que podia imaginar.
Assim, depois de
muita espera e de passar por períodos de privações, eis que se pode comemorar,
considerando que todo o esforço não foi em vão e, o que é mais importante,
chega-se o momento em que se pode relaxar um pouquinho, ou seja, é aquele
momento, conforme nossos costumes, em que se pode desfrutar do merecido
descanso, olhando para o resultado de todo o seu esforço, como caçador.
Luar
Parente Luar sua resistência é muito importante, siga os pássaros e o Grande Espírito !!!
ResponderExcluirRESISTENCIA INDIGENA CONTINENTAL !!! ANO 520 !!!